O INICIO DE UM PROCESSO COLABORATIVO EM UMA GRANJA |
Foto: Washingtom d'Anunciação |
O
Grupo Claricena, surgiu na Universidade Federal de Alagoas, tendo como estimulo
para inicio da pesquisa a elaboração do meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC/TFG),
em 2013.
Através
da pesquisa bibliográfica de Clarice Lispector descobri que havia uma única
peça teatral escrita e publicada – A Pecadora Queimada e os Anjos Harmoniosos.
Até então, éramos um projeto universitário sem grandes pretensões, apresentamos
o resultado de um ano de processo no dia 09 de dezembro de 2014, mesmo assim
decidimos continuar com a montagem. Fomos aprovados no edital estadual Deodoro é
o Maior Barato 2015 e a partir deste momento começamos a nos enxergar como
Grupo não mais como um projeto.
“Alunos da UFAL encenam Espectro, na
programação do Deodoro é o Maior Barato. Espetáculo é baseado em livre
interpretação de Clarice Lispector” (Site UFAL/2015), foi uma das matérias que
saíram sobre a nossa montagem em vários sites locais, começamos a ultrapassar
as barreiras da universidade.
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Seria
minha segunda experiência como diretor, então resolvo desenvolver uma ideia
encaminhada pela metade com o espetáculo anterior: o processo colaborativo. Digo
pela metade, pois ainda sinto que deveria ter aberto mais espaços para a
colaboração de todos com a montagem do espetáculo e com a reestruturação da
dramaturgia. Mas isso se deu devido já termos um texto fechado e no formato
utilizado para encenação, desta vez teríamos um conto, o que possibilitou uma
abertura maior.
O
Conto fala sobre uma visão de um ovo sobre a mesa e um extenso diálogo sobre o
amor, a vida e a maçonaria, associados a vida da galinha e uma outra possível
visão sobre o que é o ovo.
De manhã
na cozinha sobre a mesa vejo o ovo. Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente
percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver um ovo nunca se mantém no
presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto um ovo há três milênios. - No
próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. - Só vê o ovo
quem já o tiver visto. - Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. -
Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. - Olhar curto e
indivisível; se é que há pensamento; não há; há o ovo. - Olhar é o necessário
instrumento que, depois de usado, jogarei fora. Ficarei com o ovo. - O ovo não
tem um si-mesmo. Individualmente ele não existe (LISPECTOR, pg. 33, 2009)
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A
primeira dificuldade se deu no momento da leitura deste conto, quando os atores
sentiram uma necessidade de compreender o texto. Lembrei-me da minha primeira
experiência com o texto A Pecadora Queimada e os Anjos Harmoniosos, quando no
primeiro encontro os quatro atores se desestimularam com a complexidade do
mesmo e pouco á pouco foram desistindo do processo, me restando formar um novo
elenco, mas na segunda tentativa apresentei o enredo do espetáculo e o texto na
integra só foi entregue 5 meses depois, desta vez eles não desistiram e já
haviam pegado gosto pelo mesmo através das práticas.
Expliquei
o fato para o elenco e alguns preferiram não ler o conto, pois não o levei para
o ensaio mas eles leram em outro lugar/momento. Havia deixado em aberto, caso
sentissem necessidade, lessem, caso contrário, experimentassem na prática.
Mesmo os que leram desistiram de compreender e foram descobrindo os símbolos e
significando a obra. Fomos mastigando a
obra e ela nos permitiu descobrimentos mágicos.
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O
enfrentamento das dificuldades inerentes a um texto não deve ser reduzido a uma
recusa ou depreciação deste último. Um fragmento dramatúrgico que, numa
primeira leitura, pode soar canhestro ou mal escrito, à medida que o vamos
“mastigando” e nos apropriando dele, pode revelar surpresas ou possibilidades
não imaginadas (ARAÚJO, pg.127, 2002).
Propus á todos um processo com uma
horizontalidade, onde todas as ideias não sairiam da cabeça do encenador e onde
os atores não seriam meros executores de ideias pré-estabelecidas em um texto.
Discutimos os nossos propósitos:
Elaborar ações após as práticas com o texto de Clarice, no final de cada
encontro. Perceber e discutir as possiblidades das ações se transformarem em
cenas e comporem algum momento do espetáculo.
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Tudo
que é produzido em sala de ensaio é devidamente apreciado, discutido e
registrado pelo dramaturgo até um ponto que se julgue ‘satisfatório’ quanto aos
propósitos originais (NICOLETE, pg.321, 2004).
Disse
á todos: “Teremos um processo colaborativo. Não esperem as ideias de mim, elas
não virão, de mim virão perguntas, assim como quero que venha de vocês
questionamentos, assim encontraremos respostas, ou não, a própria busca por
respostas pode ser o nosso espetáculo. Afinal, o que é o ovo?”. Abreu (2004),
nos fala sobre essa horizontalidade:
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O
processo colaborativo é oriundo de uma series de experiência com um processo
coletivo. A diferença deste dois, segundo Abreu (2004), está na figura que vai
coordenar a amarração das ideias, que no caso será o processo colaborativo,
onde diferente do coletivo todos possuem suas funções mas podem interferir nas
concepções em prol do espetáculo. O que seria um pouco mais caótico no processo
coletivo, onde o grande problema está nos acordos, por não possuir alguém que
amarre ideias finais.
Para
entender melhor, este processo começa a ter evidencia nos anos 70, no século
20. Ainda como experimental e com uma proposta cênica que abarcava a ideia de
todos. Nas palavras de Luís Alberto de Abreu o processo coletivo possuía
uma
participação ampla de todos os integrantes do grupo na criação do espetáculo.
Todos traziam propostas cênicas, escreviam, improvisavam figurinos, discutiam
idéias de luz e cenário, enfim, todos pensavam coletivamente a construção do
espetáculo dentro de um regime de liberdade irrestrita e mútua interferência
(ABREU, pg.2, 2004).
A
criação coletiva possuía muitos problemas em sua metodologia: A excessiva
informalidade do próprio processo, falta de prazos, os objetivos eram “Era,
ainda, uma abordagem da criação totalmente empírica que se resumia, muitas
vezes, em experimentação sobre experimentação” (ABREU, pg.3, 2004).
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Depois
de experimentações, chegando nos anos 80,o diretor retoma a sua função, só que
desta vez assume também um papel de dramaturgo.
Por sua vez o diretor
assumiu de vez o papel de condutor do processo da criação teatral,
substituindo, muitas vezes, o dramaturgo como geômetra das ações e pensador do corpo
de valores éticos e estéticos do espetáculo. Ao contrário do que possa parecer,
este foi um momento bastante rico para a cena brasileira. O diretor não se
resumia mais a simples montador de textos (ABREU, pg.4, 2004).
Um vez
decidida essa horizontalidade percebo que a voz do diretor e da Clarice deixa
de ser sublime, pois por mais que a escritora não esteja conosco acaba-se tendo
uma preocupação com o “que ela queria com isso” ou “será que é isto mesmo”, que
foi o que houve no processo anterior. Desta vez os atores solicitaram uma
modificação do texto que eu estava distribuindo de acordo com a composição das
cenas e das experimentações praticas com fragmentos do conto. Comecei a
perceber uma espécie de “voz para todos”. Eu já não precisava reclamar da
palavra “engolida” ou “da desatenção com as virgulas”.
Então
começamos a conversar sobre as composições e a estética, amarração e
característica dos personagens. Nosso processo possuía agora atores com
liberdade.
Um ator
que é também autor e performer, e que tem liberdade “de participar em outras
áreas de criação, como dramaturgia, figurino, som, iluminação, cenografia,
assim como no material já criado anteriormente por um companheiro em sala de
ensaio, somando soluções em infinitas possibilidades” (NICOLETE apud. RINALDI,
2002, p. 45).
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Primeiro, realizamos uma experiência com o público no
Colóquio internacional de Artes Cênicas da Universidade Federal de Alagoas.
Propus ao elenco que realizem um experiência no colóquio, todos aceitaram,
mesmo sabendo que só saberiam do que se tratava essa experiência horas antes da
apresentação. Distribuí trechos do discurso que Clarice Lispector usou no
Congresso de Bruxaria e Literatura, abaixo um trecho:
Um escritor brasileiro disse
que estar vivo é impossível, e eu acrescento que nascer é impossível. Tenho
pouco a dizer para uma plateia exigente. Mas vou dizer uma coisa: para mim, o
que quer que exista, existe por algum tipo de mágica (LISPECTOR, pg. 122, 2002).
Tratava-se
de um laboratório cênico. Tínhamos ovos e propostas dos intérpretes e do
diretor (eu) para serem realizadas em um momento pouco planejado e único. Todos
comporão suas ações vivenciaram um primeiro ato de construção coletiva.
Tratando o público como também compositor de nossa obra, pois nas ações
pré-definidas deveria haver uma atividade que trouxesse o público em
consideração e atuante. No final da ação, algumas pessoas da plateia quebrarão
ovos nos atores (uma proposta ousada dos atores, mas aceita por todos).
O público, em geral, não tem sido
incluído como elemento fundamental nas discussões estéticas. É considerado, em
geral, apenas, como destinatário passivo das formulações estéticas
estabelecidas nas salas de ensaio, reduzido a mero observador da expressão do
artista ou simples "pagante" de um entretenimento (ABREU, pg.5,
2004).
O que realizamos foi o que faríamos em um ensaio, fechado,
dentro de quartro paredes, no entando abrimos o nosso processo e realizamos
esse laboratório cênico, trazendo o público para o fora do convencional,
compondo conosco ações no momento da performance/ensaio, bem como contribuindo
para uma reflexão sobre o que permaneceria para a obra. Pouca coisa resta hoje,
da ação realizada, porém a experiência para o elenco e o retorno do público foi
inesquecível, pois até hoje recebemos mensagens de amigos, critica dos
organizadores do evento e possuímos um acervo fotográfico da ação.
Composições
textuais de outras obras de Clarice foram acrescentadas e textos da autora
foram modificados. Eu escrevi um trecho da obra assim como alguns atores
comporão alguns outros trechos das cenas, como é o caso do texto abaixo escrito
por Jamerson Soares:
a visão de todo mundo
é o mundo de cada um
quando ela, a visão,
despenca
o mundo de todo mundo também
meu mundo foi
junto com
a direção da ponta
de um ovo.
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Permanece a divisão de linhas e versos escrita pelo
autor/ator. Qualquer componente está livre para propor uma formulação do texto
ou um acréscimo, até o momento nenhuma proposta foi recusada, pois percebemos
que as ideias condizem com a obra. Não se trata da aceitação de toda e qualquer
coisa, mas o material sugerido, até o memento coube para a composição da Granja
dos Corações Amargurados.
Nossa estreia foi marcada para 4 meses após o primeiro dia
de ensaio, nos poupamos das muitas discussões, como relata Araújo (2002), sobre
a dramaturgia, o que acelerou o nosso processo.
A maior
parte dos ensaios é consumida em questões ou problemas dramatúrgicos,
reservando-se pouco – ou nenhum tempo, em casos mais graves – para a
apropriação e o burilamento do material levantado. O risco de ficar
experimentando o roteiro indefinidamente, de não fixar prazos e limites
estreitos para que outras necessidades possam ser atendidas, é enorme numa
dinâmica como essa (ARAÚJO, pg.132, 2002).
Dentro das
características de personagens, descritas por cada um compus o que seria mais
tarde a sinopse do nosso espetáculo: “Sejam Bem-Vindos a Granja São Geraldo!
Trabalhadores se revelam nas suas mais secretas funções, em meio a um
emaranhado de discursos sobre o instrumento de trabalho deles, algo começa a
não funcionar bem e a produção da Granja começa a afetar o estado de presença
de cada um dos trabalhadores os colocando em um outro mundo (epifania). Mesmo
assim, persistem no rigor do trabalho e não param de produzir. Afetados por
surpresas amorosas e discussões sobre a real existência e função do ovo e da
galinha todos se tornam Agentes Secretos, chamados por códigos, passam a
transmitir a real função da Granja que agora se torna Dos Corações Amargurados
após a compreensão do sublime sentido do trabalho naquela indústria, cujo qual
não pode ser revelado, caso contrário os mesmos serão cosmicamente mortos.
Descubra o real sentido dos Agentes Secretos disfarçados e distribuídos pelas
funções mais reveladoras na Granja dos Corações Amargurados. "Etc. Etc.
Etc. é o que carcareja todo dia a galinha".
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As conversas sobre propostas e reflexões sobre o material
produzido se dava no final dos encontros, porém, algumas pessoas ainda não
estavam pinando, mesmo com dificuldades e alguns questionamentos, levantados em
particular apenas para mim, enquanto diretor
e fora do horário do ensaio. Então criei um formulário online, onde
todos relatam suas impressões o propõe coisas novas para os encontros. Lendo
todos organizo as proposta para o nosso processo. Ideias que vão desde estética
até músicas para a sonoplastia. Abaixo alguns exemplos:
“Gostei Da forma de "coletivo" que as coisas passaram a
ter. A nova cena com o texto do Jamerson ficou muito boa e a proposta de poder
mexer no meu próprio monólogo pra deixar ele mais palpável dentro do contexto
do espetáculo é confortante (17/10/15, Marcos Messias)”
“Proponho uma
dinâmica pré-ensaio com os atores, para tentar buscar o que há de mais profundo
e triste na vida de cada um.. até mesmo uma conversa brisante sobre a filosofia
da mágoa. Através de perguntas, o mundo se move e os pensamentos vão com ele. O
mundo de cada um (17/10/15, Jamerson Soares)”
“Não gostei da resistência da bruxa na cena da morte em não
querer expressar seus sentimentos, em querer fazer a cena toda muito neutra,
sem expressão alguma, isso me deixa inquieto pois não me passa nada nesta cena
(31/10/15, Everardo Saturnino)”.
“Ensaio geral. Achei esse dia bem produtivo. Algumas
marcações de palco e correções de cenas foram feitas. A cena “Igreja” melhorou.
Lucas ficou nos observando para no final fazer suas análises individuais e do
grupo também. Acho que foi proveitoso e que deveria ter outro encontro com ele,
já que os dias do espetáculo estão chegando (Everardo Saturnino)”
Como nos disse o Everardo Saturnino o dia nosso
espetáculo está chegando, e os resultados desse processo tem sido de uma
experiência inspiradora, um exercício para os ouvidos e para a estruturação de uma
democracia prazerosa.
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Criticas são realizadas por membros e pessoas que
acompanham o nosso processo, pois não estamos mostrando um trabalho final e a
ideia de alguém de fora para uma análise do material levantado gera uma
expectativa falsa, tanto em quem vai assistir de fora, como nos atores. Pois a
visão de um critico de fora no momento do ensaio, não incluirá o contexto com o
qual nos encontramos e será observado muitas vezes como um resultado e a
expectativa de retorno com propostas para uma melhoria pode não ser alcançada
pelos intérpretes.
Em primeiro
lugar, o direito à crítica poderá ser exercido somente pelos criadores
envolvidos. Os resultados têm sido desastrosos quando pessoas afastadas do
processo de criação, por mais competentes que sejam, são chamadas para opinar.
Afastadas do processo, desconhecendo os objetivos pretendidos ou o esforço
empreendido pelos criadores, essas pessoas tendem, naturalmente, a analisar o
que vêem como resultados e não como "algo em perspectiva", como imagens,
formas e cenas em progresso, sujeitas, muitas vezes, a radicais transformações.
O olhar de pessoas alheias ao processo é evidentemente útil e necessário quando
o trabalho já se encontra em sua fase final, mais sólido, e os criadores menos
inseguros (ABREU, pg.9, 2004).
Para
nós, a critica tem que ela tem de ser feita em "perspectiva", o que
quer dizer que deve-se conhecer e levar em consideração o objetivo que os atores
procuram alcançar, afastando-se da simples avaliação de resultados.
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Alguns deles são ainda subjetivos, apenas
sensoriais, outros bem claros como a grande velocidade com a qual estamos
conseguindo objetivar as cenas e o esclarecimento de forma geral, sobre o
enredo da obra. Deixo aqui as palavras de Abreu para estimular os leitores
desse texto a experimentar este processo, livre, democrático e eficaz, ao menos
no caso desta Granja Amargura, porém feliz.
O processo
colaborativo tem se revelado altamente eficiente na busca de um espetáculo que
represente as vozes, idéias e desejos de todos que o constroem. Sem hierarquias
desnecessárias, preservando a individualidade artística dos participantes,
aprofundando a experiência de cada um, o processo colaborativo tem sido uma
resposta consistente para as questões propostas pela criação coletiva dos anos
1970: uma obra que reflita o pensamento do coletivo criador (ABREU, pg. 10,
2004).
REFERÊNCIAS:
ABREU, L. A. de. Processo Colaboratio: Relato e Relexões
sobre uma experiência de criação. Sala Preta, São Paulo-SP, 2004.
ARAÚJO, A. A Gênese de vertigem – O processo de
criação de O Paraiso Perdido, USP, São Paulo-SP, 2002.
LISPECTOR. C. Felicidade Clandestina. Rocco, Rio de
Janeiro-RJ, 2009.
NICOLETE, A. Criação Coletiva e Processo Colaborativo:
algumas semelhanças e diferenças no trabalho dramatúrgico, Sala Preta, São
Paulo-SP.
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www.ufal.br/alunos-de-teatro-encenam-espectro
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