Maceió, 23 de dezembro de 2015
Olá Cia Claricena,
Então, meio que combinei com o Anderson de elaborar um texto sobre o espetáculo “A
Granja dos Corações Amargurados”, a partir da apresentação que assisti no último dia 09/12. Ei-lo
aqui. Fiquei feliz por essa abertura concedida e espero contribuir de alguma maneira com essas
reflexões para o trabalho de vocês. Acredito que ações de natureza micro como essa, trocas no
âmbito do “um para um”, fora das situações institucionalizadas, priorizando o afeto e a leveza da
informalidade são mais poderosas do que imaginamos, pois preparam terreno para um mundo de
possibilidades criativas diferentes das que conhecemos.
O exercício crítico que desenvolverei aqui visa muito mais alimentar uma discussão sobre
teatro do que entrar no mérito da valoração, para não ficarmos limitados em determinar as coisas
entre boas e ruins, certas ou erradas. A lógica será a do diálogo, do levantamento de questões,
partindo do pressuposto que o espetáculo, enquanto obra de arte, não é uma forma absoluta, mas
emerge como um momento do processo criativo, reflexo de uma organização sempre transitória,
sempre passível de modificação e complexificação, conforme o grupo se mantenha aberto às
novidades e descobertas que surgem enquanto se trabalha.
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Foto: Bruno Alves |
Ainda assim, é de um olhar particular que esse texto trata, portanto sintam-se livres para
abraçar apenas o que fizer sentido para vocês. E, claro, também podemos dar continuidade ao papo
em outros espaços e momentos, caso interesse e algo aqui necessite de outras palavras para ser
abordado. Vamos lá, então…
Bem, eu não conhecia o conto que serviu de motor para a criação do espetáculo, mas durante
a apresentação reconheci textos que possuíam uma natureza bem próxima das coisas que já li de
Clarice, e outros que não me soaram como pertencentes ao seu universo. Antes de escrever esse
texto, li o conto e acabei confirmando certas impressões.
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Foto: Bruno Alves |
“O Ovo e a Galinha” pode ser o ponta pé inicial do trabalho, mas vocês não fazem dele a sua
única referência, escoando assim por outros caminhos. Haja vista essa outra ficção construída para
dialogar com Clarice, que seria a situação da granja e seus agentes secretos. A dramaturgia como
um todo se desenvolve a partir dessa combinação. Todas as escolhas da encenação existem em
função desse diálogo, cada qual possuindo um grau distinto de eficiência para o sucesso dessa
tarefa.
O espetáculo de certa forma reflete uma tensão entre dois universos muito distintos e, a
priori, inconciliáveis: o intimismo e existencialismo da obra de Clarice e a realidade prática e
objetiva de uma granja, especialmente porque essa granja esconde um grupo de agentes secretos.
Embora Clarice utilize o termo “agente” em seu conto, não é desse sentido “policial” que ela está
tratando. Nem sei se o lance dos agentes secretos surgiram a partir daí, mas, a meu ver, é nesse
tensionamento que reside a potência criativa do trabalho e também o perigo dele se enfraquecer
enquanto um todo.
É na medida que esses dois universos são articulados que o espetáculo se apresentará mais
ou menos coerente na condição de uma obra autônoma e inteira, e não como mera combinação de
partes distintas.
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Foto: Bruno Alves |
E as partes, uma vez existentes, tem um papel fundamental na retroalimentação do todo,
fortalecendo sua integração ou produzindo desvios para longe do que se pretende. Nesse sentido,
por exemplo, chamo atenção para a significativa distância entre a ideia das movimentações em
conjunto e a precisão da sua execução; essa distância não passa despercebida ao espectador e revela
ainda um trabalho árduo do grupo pela frente. As marcações coordenadas e as coreografias em
grupo compostas pela repetição de movimentos reforçam o caráter da produção em série de uma
indústria. “Não se pode parar de produzir, apesar de tudo” é o que parece dizerem os tais agentes
secretos. A maioria do elenco, no entanto, ainda deixa nítida sua dificuldade em se apropriar de tais
movimentos, não conseguindo esconder certo descompasso, comprometendo assim a qualidade da
forma desejada.
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Foto: Bruno Alves |
Outro aspecto, enquanto parte do todo, que denuncia alguma fragilidade na missão de
garantir coerência dramatúrgica ao espetáculo, é a relação do ator com a palavra. Clarice é
requisitada em cena constantemente. O absurdo impresso na encenação, sua configuração quase
surrealista, mantém uma forte comunicação com a fluxo de pensamento do narrador da história de
Clarice; trechos inteiros do conto são ditos e interpretados, mas a intensidade de sua escrita é pouco
percebida, pois parece existir uma enorme lacuna a ser preenchida nesse processo de tradução da
palavra escrita para a ação cênica. A palavra de Clarice é, nesse momento do trabalho, uma
provocação ainda respondida de maneira precária ao que ela demanda.
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Foto: Bruno Alves |
Em contrapartida, vocês construíram imagens poéticas que denotam a devida sensibilidade
para tratar das questões ali abraçadas, como a cena com os milhos que escorrem das mãos dos
atores e cobrem o palco deixando-o amarelo e pronto para receber os joelhos dos agentes; ou ainda
a própria ideia das ações em conjunto, tornando o grupo de agentes num bloco que se impõe com a
força dos seus movimentos repetitivos remetendo, simultaneamente, a um teor ritualístico e a um
sentido de máquina.
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Foto: Bruno Alves |
Destaco também o momento, já no fim do espetáculo, quando uma das atrizes quebra um
ovo sobre seu corpo e aquela “vida interrompida” escorre sobre sua pele. Aliás, o elemento ovo é
extremamente potente enquanto objeto cênico, carregando tanto nas suas forma, textura e odor,
quanto no seu valor simbólico, uma variedade incrível de possibilidades de uso. E vocês deixaram
claro que sabem disso.
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Foto: Bruno Alves |
O trabalho está cercado de desafios, vocês bem sabem e os confirmaram lá no bate papo: a
escolha do conto, que é um mistério até para a própria autora; a quantidade de atores do elenco (não
que quantidade seja um problema, mas a conciliação de agendas é pauta constante no trabalho em
grupo); a escolha de estrear numa data muito mais pelo seu valor simbólico do que pela devida
maturação da obra e, obviamente, a decisão de se criar teatro de forma autônoma e quase
desprovido de apoio. A estreia do espetáculo não pode ser compreendida como a superação de
alguns desses desafios; eles ainda precisam ser perseguidos, pois são importantes para a
continuidade dessa história.
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Foto: Bruno Alves |
O caminho para isso o grupo já conhece (ensaios, estudos, discussões e experimentações
contínuas) e parece estar disposto a percorrê-lo. O que não se pode perder de vista é que essa
caminhada não é passeio, embora seja imprescindível sentir prazer enquanto se anda.
E aí, independente das queixas que vocês tenham sobre a Universidade, é lá que vocês estão
e foi lá que vocês estrearam. Se não houvesse sensibilidade e interesse, mínimo que seja, dos
profissionais ali atuantes, a situação seria outra e a estreia talvez tivesse realmente que ser adiada.
Digo isso porque fiquei incomodado com as queixas sobre feitas no bate-papo, não porque não haja
problemas na instituição mas, especialmente porque o público não tinha nada a ver com aquilo. A
responsabilidade de como o trabalho foi apresentado é do grupo e se de alguma maneira o suporte
limitado da Ufal lhes soou como um absurdo ou uma falta de respeito, deixassem para expressar
essa revolta depois, internamente, com os respectivos professores e coordenadores de curso. Até
porque universidade não é quartel general, é lugar de passagem, de livre fluxo; portanto, que não
lhes faltem outras pairagens por onde percorrer e outros públicos com quem se relacionar.
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Foto: Bruno Alves |
É isso, Claricena, esses são os principais comentários que gostaria de tecer sobre a
experiência que vocês nos proporcionaram. Foi ótimo vê-los, ver uma criação tão cheia de vida.
Desejo que 2016 seja um ano bastante produtivo para vocês, cheio de oportunidades de
apresentação desse novo trabalho e ideias para espetáculos futuros.
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Foto: Bruno Alves |
Thiago Sampaio
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