A
qual incêndio Claricena nos convida?
Escrevo essa reflexão crítica do ponto de vista
de um artista que foi atravessado pela urgência e experimentação de linguagem proposta
pelo Grupo Claricena na imersão audiovisual transmitida pelo WhatsApp.
O grupo pesquisa o universo de Clarice
Lispector e, para criar esse espetáculo (por sua particularidade fronteiriça é
difícil nomear esse trabalho, por isso vou deliberadamente chamá-lo de
espetáculo), eles se debruçaram na única, até onde se sabe, dramaturgia publicada
por Clarice: A pecadora queimada e os anjos
harmoniosos.
A dramaturgia de Clarice foi escrita entre 1946
e 1949, muito pouco se fala dela em estudos sobre o teatro, o que é mais uma
comprovação da invisibilidade sistemática sobre obras de mulheres, visto que
nem mesmo Clarice Lispector, com uma obra tão relevante e atual, escapa a essa
estrutura.
Também é importante ressaltar que o coletivo
nasce a partir de uma diversidade de agentes históricos de vários estados
brasileiros e se consolida com artistas que se encontraram em uma escola
pública de teatro. Esta relação diversa do Claricena, que tem como ponto de
encontro um equipamento público de ensino, nos aponta a importância de
políticas estruturantes que possibilitem espaços públicos de experimentação da
arte em suas diversas linguagens.
A luta por seguir em estado de pesquisa
continuada por nove anos, criando obras sem compromisso com as fronteiras da
cena, misturando performance, teatro e audiovisual, está explícita no relevante
resultado desse trabalho e nos apresenta uma obra inquietante, que dialoga com
nosso tempo e propõe uma experiência artística em um campo do pensamento que
pode ser mais tensionado pelos nossos artistas da cena: os aplicativos de redes
sociais.
Mulher nenhuma cabe dentro de um apartamento fez
com que o aplicativo que uso diariamente para me comunicar se transformasse num
território artístico, que me engajou corporalmente na história de Irene do 805
e me apresentou uma disputa por desconstruir socialmente padrões impostos ao
corpo da mulher.
O engajamento corpóreo que me afetou não é
pouca coisa nesse tempo de efemeridades desterritorializadas, me colocou a
questão da construção social da mulher não apenas de maneira discursiva, mas
principalmente em ato, em vontade de interagir, com reações corporais aos
vídeos, mensagens e áudios que chegavam ao meu aparelho celular.
Toda ação acontece dentro de um grupo de
WhatsApp onde o público previamente entra. Neste grupo ocorre uma reunião de
condomínio em que também podemos interagir. Logo no início, ouvimos o áudio de
uma entrevista com Clarice Lispector, em que ela diz: “Bom, agora eu morri,
vamos ver se eu renasço de novo, por enquanto eu tô morta”. Esta frase pode nos
abrir diversas chaves de leitura da obra que se segue, ao sabermos, por meio de
mais uma mensagem, que uma mulher exausta por ter sua vida controlada pela
sociedade incendiou o edifício em que ela mora.
Já sabemos que a mulher exausta irá queimar seu
apartamento e a narrativa se desenvolve nos apresentando os motivos que a
levaram a ter essa atitude. É nesta tomada de consciência de Irene do 805 sobre
sua condição, até o ato de incendiar esse lar repleto de controle sobre seu
corpo, que se potencializa a tensão e o prazer que se seguem ao fruir a obra.
O recurso narrativo de já sabermos que no final
todo aquele condomínio será incendiado é bastante inteligente e nos incita a
não apenas entender os motivos, mas principalmente a nos sensibilizar com a
protagonista a ponto de percebermos que a única atitude possível é queimar a
estrutura que a encarcera.
O que esse condomínio significa? Por que o
coletivo decide colocar a questão da violência contra a mulher dentro de um
ambiente privado? Quais conexões entre esse lar opressivo e a nossa situação? O
que devo incendiar? São algumas
perguntas disparadas pela obra. O grupo apresenta seu ponto de vista sobre elas
e ao mesmo tempo nos dá o prazer e a urgência de elaborar nossas reflexões.
A relação com a obra de Clarice é extremamente
sensível e contundente. Em A pecadora
queimada e os anjos harmoniosos, uma
mulher é condenada à fogueira por adultério, todos a julgam e emitem suas
opiniões sobre o destino dela, com exceção da mulher que está sendo julgada
pela sociedade. A única ação dela é rir. Enquanto todos a julgam, ela ri de
todos. É o riso da subversão, do escárnio, do desdém de uma sociedade. Um riso
incendiário possível na situação em que ela se encontrava.
As pesquisadoras e pesquisador
da UEPG[1], Ana Cláudia Andruchiw,
Johny Adelio Skeika e Silvana Oliveira nos dizem, fazendo referência a
Deleuze, que esse riso é a máquina de guerra da personagem, é a força intensiva
além da linguagem, que subverte a ordem estabelecida e faz o enfretamento da situação, escapando do esperado. Quem se
atreve a rir e afrontar a condenação à morte?
Se na peça de Clarice a alternativa é esse riso subversivo,
qual seria a atitude possível hoje? O grupo faz uma operação ética bastante
interessante: não será mais o corpo da mulher que será queimado, e sim o
edifício todo de uma sociedade patriarcal que ainda está de pé, impondo
tecnologia de controle aos corpos das mulheres.
Pontuo também que o uso do WhatsApp como suporte material
dessa obra é extremamente interessante, pois forma e conteúdo estão intimamente
interligados. As mensagens, fotos, vídeos e áudios que vão impulsionando a
narrativa para frente também vão me dizendo que assisto a tudo isolado em minha
casa e aí a reflexão se torna imediata: o que preciso incendiar no contexto em
que vivo?
Por último, mas não menos importante, é preciso celebrar que
essa obra tão atual e relevante tenha sido concebida e produzida por um grupo
com diversidade de corpos e experiências de vida, dentro de um contexto
pandêmico amplificado pela necropolítica praticada pelo atual governo federal.
Celebremos o Claricena! Celebremos Clarice Lispector!
Celebremos os incêndios que ainda estão por vir contra essa estrutura
patriarcal!
[1]
Link do artigo - https://revistas2.uepg.br/index.php/muitasvozes/article/view/16959/209209214120
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