O teatro digital foi largamente debatido nos dois últimos anos como uma saída possível, temporária ou radicalmente substitutiva, das formas teatrais tradicionais. Interessante pensar como um teatro produzido a partir da presença se tornou nos últimos anos, de certo modo, biologicamente perigoso. Antes disso, no entanto, podemos encontrar na história da cena ocidental uma grande discussão sobre os sentidos da representação teatral em face do gesto performativo - esse que em seu paroxismo dispensaria inclusive a presença humana na medida em que o fenômeno, o evento em si, instauraria de forma autônoma a construção ou desconstrução da linguagem enquanto acontecimento.
O vaivém de
teses a propósito do tema da presença e da representação dialoga
extraordinariamente com o que o mexicano Octávio Paz chama de "tradição da
ruptura", aspecto que definiria (pelo menos em alguns contornos) os
caminhos da modernidade e da poesia moderna como produções humanas que se
estruturam dentro de uma ritualística da contradição. Segundo Paz: "o
moderno é autossuficiente: cada vez que aparece funda sua própria tradição.".
O trabalho
reflexivo que Octávio Paz faz a partir do problema dialético entre ruptura e
tradição na modernidade me parece interessante para iniciarmos esse exercício
crítico sobre a peça digital "Nenhuma mulher cabe dentro de um apartamento",
do grupo Claricena. A proposta de encenação audiovisual se dá pelo Whatsapp, o
aplicativo de comunicação mais utilizado hoje pelos brasileiros.
Apenas para
termos alguma dimensão de como o Whatsapp circula e é meio de circulação no
mundo podemos observar alguns dados atualizados sobre sua relevância global.
Com mais de 1,5 bilhão de usuários no planeta, o aplicativo foi comprado em
2014 por 16 bilhões de dólares pelo Facebook, uma gigante Big Tech responsável
por aprofundar a cultura digital em seu aspecto de mercantilização das
subjetividades - em outras palavras, o
Facebook lucra a partir de uma necessidade de exposição do universo
privado de seus usuários artificialmente criada pela própria plataforma. Quanto mais você se expõe, maior é o gozo
sensorial. As reações simplistas de aprovação e incentivo são dadas a partir de
um clique no mouse por outros usuários que também, a seu modo, revelam gostos
pessoais, seus desejos e suas avaliações morais com a interação. O Facebook
portanto cria de fato um espaço de sociabilidade, mas não necessariamente um
espaço social. O mesmo vale para o Whatsapp que cada vez mais vai se tornando
sala de conferências, de decisões políticas e de trocas pessoais.
Na peça
"Nenhuma mulher cabe dentro de um apartamento" é curioso notar
justamente a estruturação do aplicativo como esse não-lugar onde medidas são
tomadas, segredos são revelados, ameaças são feitas, assim como são realizados
expurgos e catarses. Em um grupo de conversa que seria o território onde a peça
acontece, nós espectadores primeiro podemos assistir a uma reunião de condomínio
onde algumas questões da convivência das personagens já são apresentadas como fatores
de conflito. Também é possível notar que as individualidades das personagens se
traduzem a partir dos signos usados para a comunicação de suas ideias e de suas
intenções, esse momento inicial talvez já nos ofereça alguma zona crítica sobre
o atual momento histórico em que as relações interpessoais se dão a partir de
telas de celular, cliques e frases sucintas, um contraponto interessante para a
outra materialidade que se apresenta como referência da peça: a poética de
Clarice Lispector, notadamente contrária à natureza sintética das redes sociais
pois manifesta-se caudalosa, extensiva, ascética e imprevisível.
A trama de
"Nenhuma mulher cabe dentro de um apartamento" nos apresenta portanto
uma outra relação crítica possível: nenhuma Clarice cabe dentro de uma tela de
celular, o discurso clariceano verificado na personagem principal também parece
não caber na fôrma do aplicativo onde, por fim, toda a qualquer interlocução,
seja através da escrita, de memes, de imagens, músicas ou arquivos
compartilhados, dá-se a partir da lógica da indiferenciação. Isso quer dizer
que a estrutura do Whatsapp como espaço cênico carrega em si um imenso desafio
que diz respeito ao fato dos discursos emergirem identificados por um caráter
homogêneo, de modo a criar alguma dificuldade na apreensão dos diálogos e do
desencadeamento narrativo.
A peça escrita
por Julia Balista, com dramaturgismo de Bárbara Esmênia é livremente inspirada
em uma dramaturgia escrita por Lispector em 1964 chamada "A pecadora
queimada e os anjos harmoniosos", que parte de uma situação cotidiana que
explora as peculiaridades de uma mulher chamada Irene, cuja liberdade afetiva e
sexual acaba por incomodar sua vizinhança. Os condôminos, absolutamente
controlados por uma rotina de vigilância privada, são eles mesmos receptores e
emissores de informações das vidas alheias, constituindo organicamente uma
espécie de sistema de monitoramento no qual os julgamentos morais são chaves
regulatórias para a condenação da pecadora.
Interessante a
ponte construída entre a ideia de uma sociedade de controle e a própria plataforma
Whatsapp como meio de cerceamento das relações e das liberdades individuais.
Nesse sentido, o grupo também explora a presença da mídia sensacionalista como
um dos vetores que distorcem os sentidos da informação a fim de perpetrar uma
cultura caça-likes em nome de tragédias anunciadas. Em "Nenhuma mulher
cabe dentro de um apartamento" um jogo de tabuleiro digital se estabelece,
somos capazes de ver as rodadas de ações e as decisões tomadas por todas as
personagens a partir de um estratégico ponto de vista que inevitavelmente
atinge Irene, alvejando-a como a responsável pelo mal estar e pelos problemas
observados, afetiva e estruturalmente, dentro do condomínio.
A provocação do título da peça nos remete aos
sentidos históricos preconizados pela primeira onda do movimento feminista
branco o qual indica em termos inaugurais a importância de se perceber a vida
doméstica como trabalho e mais do que isso: reconhecer que as mulheres não
devem ficar relegadas ao universo privado dos lares e de sua ambientação
socialmente castradora. As posições de mãe, cuidadora, cozinheira, faxineira,
para as mulheres brancas passam a ser símbolo de um passado em processo de
superação, uma vez que suas identidades começam a tomar os espaços públicos de
forma politicamente auto-organizada. A racialização nesse ponto é deveras
importante já que é verificável historicamente uma enorme diferença nos termos
que constituem as lutas de mulheres negras por direitos, por uma série de
condições jurídicas do período escravocrata e do pós-abolição as mulheres
negras, diferente das brancas, ocupavam simultaneamente os territórios públicos
e privados jamais como sujeitos capazes de produzir política.
A questão
levantada a partir de Clarice e do título da peça portanto nos revela que a
ideia "mulher" não se generaliza, pelo contrário, encontra-se em uma
classe social específica (aquela que mora em apartamentos) e provavelmente
também participa de um grupo racial historicamente privilegiado - aqui a palavra "provavelmente" é
de suma importância, pois no teatro sabemos que as exceções são possíveis e
interessantes para o redimensionamento do imaginário cênico.
Como espectadora
da peça, fui levada a um outro conto de Clarice, "A Paixão Segundo
G.H" que fala também a partir de um espaço privado, um apartamento de alta
classe no Rio de Janeiro onde a personagem principal, G.H, se vê em um estado
enigmático e reflexivo a partir do quarto da empregada que acaba de demitir-se.
Ao entrar nele,
G.H descobre que a empregada fazia um desenho seu na parede, como se estivesse
sempre a observá-la. A patroa desenhada na parede é oca, conta apenas com a
silhueta, isso causa em G.H uma profunda estranheza que admite seu ápice quando
ela decide engolir uma barata avistada no chão do quarto, qual engolisse uma
hóstia para se purificar.
Os caminhos
estéticos que Clarice Lispector arma, neste e em outros textos, para
descortinar e desmontar em fragmentos o terror interno de um apartamento de
classe alta e as relações ali estabelecidas parecem ser uma inquietação também do grupo em "Nenhuma mulher cabe
dentro de um apartamento", no entanto, a busca ao longo da peça vai se
esvaziando na medida em que a personagem Irene não apresenta ao público camadas
de contradições que possam adensar inclusive os sentidos estritos de uma
"mulher" que não pode caber dentro de um apartamento, pois, no final
das contas ela cabe, ela cabe e faz do apartamento a sua revolução. Incendeia
tudo que há em volta e perturba a calmaria dos vizinhos, os algozes permanentes
de sua liberdade.
Via de regra uma
personagem heroína que defende seus direitos até o fim costuma estabelecer uma
grande conexão moral com o público, mas e se não fosse assim? Se Irene também
pudesse abrir a boca e mostrar a podridão de sua língua (assim como a língua de
G.H abençoada pela barata) para desmantelar a expectativa romântica que nos faz
de cúmplices, será que essa possibilidade abriria precedentes para que se
desmantelasse também a fixidez da própria plataforma onde a peça se passa? É
possível Irene como personagem-guia de nossa trajetória ética na peça
transpassar a autoconsciência didática e teleologicamente feminista para abrir
frestas desconhecidas as quais investigaremos juntas? Juntas: nós, mil Irenes,
as brancas, as pretas, as vivas, as mortas, as que vivem em condomínios, as que
vivem em bairros distantes, periferias, várzeas, baixadas, favelas, nós, mil
Irenes, todas sedentas para saber o que há depois do fogo.
Paloma Franca
Amorim
julho de 2022
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