Tudo Vira Pó

Acabou. Acabou o sono, a vontade, o gozo à dois, a comida exposta às moscas, acabaram-se os dias de plenitude, a sensação de saciedade foi jogada no sanitário, acabou o corpo de todas as formas, a conversa sadia, o zelo com o próximo, o fluido, os ditos, o silêncio. Acabou-se o que era doce, acabou o simples envio de cartas românticas, o sol contemplativo, o olhar prolongado nas coisas. As fotografias se definham até virarem objetos antiquados; o coração em chamas, a prece vazia diluindo-se em barro molhado, todos os papéis da memória foram rasgados e deixados às cinzas.

Foto: Bruno Alves


Há um otimismo no meio das cinzas: o ressurgimento do sentido de si e do mundo. A era dos desassossegados com a rotina está logo aqui; o ócio dos dias fazendo morada nos peitos desejosos de liberdade. Até a liberdade é feita de pó, porque todos os problemas, opressões, angústias e lamentos têm que se voltarem ao chão e dele renascer vida. Quem dera eu tomar posse do não TEMER o imprevisível, jogar a revolta aos ventos e como uma tempestade de areia cegar os olhos do ódio.

Foto: Bruno Alves

 O fim por completo não significa que pode se transformar em começo, recomeço ou meio. Recomeço só acontece quando a alma se distancia do egoísmo, se desprende do rancor, do passado que a despedaçou, das sensações e sentimentos múltiplos que pesam as costas. Passado, presente e futuro estão interligados, é o resultado dos impulsos imaginativos do homem, e é sua criação a ideia do tempo. O homem pode destruir tudo em questão de minutos como também pode reconstruir, mas mesmo assim a primeira essência se esvai pelo esgoto sem chances de reversibilidade. O que destruiu, tá destruído, com o pó vai a essência e se for reconstruído não volta ao verdadeiro sentido da existência.

Foto: Bruno Alves

Cada sociedade transmite aquilo que o senso comum impõe, cabe ao próprio ser humano encontrar sua própria verdade e moldá-la para o bem coletivo. Fora isso, o dia a dia vai abaixo dos sete palmos de terra. 


Foto: Bruno Alves

Os sonhos são feitos de poeira estelar, somos grãos de areia subversiva pela soma do caos e luz. Somos feitos de desejos animalescos e temos esse instinto de destruição e autodestruição, e também temos a capacidade de dançar com os dois, um trio no mesmo corpo, na mesma mente. Uma soma do irregular e o possível, até porque nós somos irregulares. Ninguém nasceu com uma forma perfeita, invejável, pois existe uma forma para cada universo. Universos que sanam as ruínas ou as atraem.
Foto: Bruno Alves

Feitos de uma só pele, iguais saímos pelo mesmo orifício e matéria prima, o relógio é que nos contempla, é o que nos mantém em carne viva andante. Carnívoros ao nível máximo, todo o estrago repousa em nossas mãos, porém a morte, como um estrago imprevisível revigorante, nos faz brincar na lama do tempo, nos banha de pó, e sobre esse mesmo pó andamos descalços, soltos entre a linha tênue da quieta sobrevivência e da instabilidade. Do pó voltaremos, mas flutuaremos e seremos levados para o fim de uma história sem ponto final...


Foto: Bruno Alves



Foto: Bruno Alves

Fotos da ação performática "Tudo Vira Pó" realizada no ano de 2016, na Mostra IP de Performance, com organização do Coletivo Careta. 
Texto: Jamerson Soares

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