imaginação e fumaça, por Vana Medeiros

Critica escrita por Vana Medeiros a cerca da nova pesquisa do grupo Claricena com estreia prevista para o dia 29/07/2022.

Imaginação e fumaça - As virtualidades sugestivas de Mulher nenhuma cabe dentro de um apartamento.

São muitas as novas possibilidades que se apresentam com a expansão de pesquisas de linguagem do que poderíamos chamar de teatro virtual ou teatro online, desde que começamos a enfrentar, no início de 2020, a pandemia da Covid-19. O espetáculo "Mulher nenhuma cabe dentro de um apartamento'', produzido pelo Grupo Claricena, propõe alguns caminhos para esta pesquisa, que, convidada pela companhia, irei comentar, na tentativa de colaborar na tessitura deste diálogo.

 


O primeiro aspecto que me chama a atenção no trabalho é a alternância de tons, entre a delicadeza e o humor, que percorrem todo o texto, e são cuidados pela encenação, que não deixa que nada escorra para fora quando entramos para o grupo de WhatsApp criado para ser palco desta experiência (falaremos mais adiante desta escolha).

 

A peça parte de uma reunião de condomínio no Edifício Clarice para apresentar os condôminos como seus personagens, com destaque ao casal que mora no 805. Jorge e Irene não parecem estar no melhor momento de seu relacionamento, e o motivo para isso tem sido uma vontade que, crescendo no peito de Irene, faz com que ela precise fazer uma escolha: se entregar à paixão com Joana do 903 e propor uma relação poliamorosa a Jorge ou enterrar seus sentimentos.

 

Como decisões como esta nunca são simples para ninguém - e quando se apresentam para mulheres costumam carregar uma série de fatores complicantes -,é claro que os outros moradores se interessam pela fofoca questão que, levada ao limite, recebe atenção até mesmo de uma equipe de televisão, que fazia uma reportagem sobre o moderno sistema de segurança do prédio que se transforma, é claro, em uma ferramenta para acabar com a pouca privacidade de seus moradores, especialmente com a de Irene. A trama é apresentada em um flashback que vai do primeiro momento em que ela tenta conversar com o marido sobre a possibilidade de eles repensarem a relação, até o dia em que, com a pressão sofrida por Irene e suas subjetividades abafadas, a trama queima em seu fim trágico e poético.

 

Com uma dramaturgia generosa, que vai nos guiando dia a dia pela relação entre os personagens sob o constante escrutínio da equipe de televisão, a história se desenrola de maneira instigante, lançando mão de consistentes elementos simbólicos, que poderiam, no entanto, ser melhor explorados em sua intensidade e poeticidade. Tenho a impressão de que o fogo, por exemplo, que traz significados relacionados tanto à destruição como à purificação; à sexualidade; e à impossibilidade de Irene caber em si mesma, poderia contaminar outros momentos da dramaturgia, e nos levar além da imagem em que ele acaba se contendo.

 

Um pouco mais de atenção também poderia ser dada à curva dramática da própria protagonista. É possível entender muito claramente os acontecimentos que guiam sua história, mas não sei se isso pode ser dito das angústias que a tomam. Fiquei com vontade de ouvir mais de Irene, desta mulher que, como todas as outras - esta é a mais pura verdade - não cabe dentro de um apartamento. Mais do que os fatos, quais são as especificidades deste movimento de contenção que estas paredes exercem sobre Irene? E que paredes são essas? São sempre os próprios condôminos, o marido, a namorada que também não entende o que ela passa? Ou talvez em alguns momentos sejam também paredes que ela mesma se impõe a partir deste olhar sempre escrutinador do outro? Quis mergulhos mais profundos em Irene, enfim, o que também diz a favor da capacidade da dramaturgia de instigar esse desejo em mim.

 

E é a partir deste desejo que quero falar da, na minha opinião, acertada relação criada entre o espectador e a dramaturgia. Existe aqui, neste trabalho, e especialmente na escolha do grupo de WhatsApp como plataforma para esta criação, uma teatralidade própria de um teatro com auto-estima, que se sabe teatro, que tem confiança em si mesmo. Estamos diante de um convite ao espectador para que, na ausência de expedientes ou até mesmo corporalidades prontas para os personagens, ele próprio complete cada passo na medida em que caminhamos, para que ative sua imaginação em um exercício muito mais demandante do que os tempos escancarados em que vivemos costumam exigir.

 

Isto porque, a partir do momento em que nos vemos em uma conversa virtual com estes personagens, estamos ao mesmo tempo com e sem eles. Pisamos neste terreno sugestionador, quase erótico, das virtualidades; um campo habitado por sedutoras personas, que povoam salas, corredores, feeds e linhas do tempo, encarnando estas espécies de cópias que só são atraentes exatamente por não serem reais. Cópias por vezes muitos fiéis por vezes calculadamente distantes de si mesmas, e que, ao nos oferecer uma boa visão de suas intimidades, empurram nossas consciências em direção à tarefa automática de completar aquilo que não é dito.

 

O Personagem que desde sempre só existe em nossas imaginações, portanto, agora vive esta afirmação de uma maneira muito mais real, viva, do que quando temos, ao menos um ator no palco, na nossa frente, nos dando outros elementos para o jogo: sua aparência, sua entonação, sua respiração, suas pausas, suas intencionalidades a cada minuto, a maneira como se relaciona, se afasta e se aproxima das outras figuras em cena. Tudo isso compõe os dados que não temos em um chat de WhatsApp, mas que, ao mesmo tempo, emula este espaço tão íntimo que é o das conversas cotidianas, e, assim, nos aproxima enquanto nos afasta.

 

É neste convite ao mesmo tempo sedutor e mandatório que o Grupo Claricena me parece ganhar o espectador, que tem a possibilidade de construir ali também, durante aquela hora de encenação, sua própria persona instantânea, cuja personalidade se baseará em suas escolhas. Uma personalidade momentânea que se fará em tempo de performance, nas reações às conversas dos personagens, seja através de palavras, figurinhas ou gifs animados que o próprio público terá a oportunidade de experimentar.

 

A todo momento, tenho, portanto, uma consciência quase física, corporal, de que conheço e não conheço Irene ou Jorge do 805, Joana do 903, Regina do 702. A tensão entre o que estas personagens apresentam num chat, este ato de ler suas conversas, ouvir seus áudios e assistir a seus vídeos parece percorrer meu corpo, e me instaurar a sensação de ter sido convertida sem que eu percebesse em uma espécie de voyeur do ato teatral, condenada a ter que, com a minha imaginação constantemente requisitada, cavar meu caminho de saída disso tudo, ao mesmo tempo em que vou me sufocando com Irene na fumaça e no calor que sua trajetória produz. E nas sombras que sua luz lança na minha própria história de mulher que, como Irene, tem como busca diária as maneiras com que meu corpo pode extrapolar os limites do meu apartamento.


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