queimar o prédio
Entre os tantos contos, romances e ensaios de Clarice Lispector (1920 - 1977), há apenas uma dramaturgia: A pecadora queimada e os anjos harmoniosos, publicada em 1964 em A Legião Estrangeira. No prefácio da seção Fundo de Gaveta, Lispector afirma que a obra foi escrita apenas por diversão enquanto eu esperava o nascimento do meu primeiro filho, ou seja, entre 1948 e 1949, e diz também que o texto não presta. Em carta escrita a Fernando Sabino anos antes, em 1946, a autora conta que começou a escrever uma "cena":
Em 2022, o Claricena volta a debruçar seu olhar sobre A pecadora queimada e os anjos harmoniosos, partindo dela enquanto mote para conceber uma experiência formal singular: Mulher nenhuma cabe dentro de um apartamento é inteiramente apresentada no aplicativo de mensagens WhatsApp, em tempo real.
A encenação visual de Anderson
Vieira desenvolve-se em diálogo com a dramaturgia de Júlia Balista e o
dramaturgismo de Barbara Ismênia; e um grupo de WhatsApp ganha dimensões
diversas ao longo da obra. No início, depois das orientações técnicas, duas mensagens servem como
prólogo. Primeiro, os minutos finais da última
entrevista de Clarice Lispector. Eu
escrevo simples. Eu não enfeito. (...) Bom, agora eu morri. Mas vamos ver se eu
renasço de novo. Por enquanto eu estou morta. Estou falando do meu túmulo.
Ao mesmo tempo que é instaurada,
ainda que de modo abstrato, a atmosfera de Mulher
nenhuma, também aponta-se de cara uma operação formal recorrente: no final
da mensagem de áudio, o mesmo trecho é reproduzido em velocidade acelerada.
Afinal, estamos no WhatsApp, é 2022, e o tempo urge sempre. A
segunda mensagem é simultaneamente de boas vindas e um convite à imaginação do
espectador/participante. A voz de Fernanda Heitzmann, criadora e intérprete,
desenha a espacialidade dos acontecimentos que virão nos próximos quarenta e
cinco minutos. Definitivamente, nós
estamos dentro de um prédio.
O Claricena define o espaço da
ação, compreendendo a virtualidade da encenação e suas possibilidades de
diálogo com o real. O público é informado de que pode interferir; na
apresentação assistida, em geral, o que se viu foram reações às mensagens,
ferramenta recente do aplicativo, quase como que os risos e suspiros que se
ouviriam em um espaço cênico compartilhado.
Um dos números presentes no grupo
carrega o nome de Contrarregra. De modo semelhante ao que se veria no palco,
ele mudará o título e a imagem do grupo como quem troca cenários, além de
enviar imagens, áudios e vídeos como quem opera luz, projeção e som. O WhatsApp
é tornado caixa preta pelo Claricena, e há muito o que se pode construir neste
mesmo espaço virtual. Nesse sentido, com as ilusões continuamente rompidas e os
pactos e convenções refeitos a cada cena, estamos diante de uma obra épica, que
narra a própria representação.
No primeiro ato, o grupo de
WhatsApp representa um grupo de WhatsApp: uma reunião online de condomínio do
Edifício Clarice está acontecendo, e todos ali presentes são moradores. A
síndica lista as pautas e os conflitos começam a aparecer. Ao longo do segundo
ato, acompanhamos os dias que antecedem o tão falado incêndio. O lugar do
público altera-se a cada cena. O grupo varia entre espaço concreto, exibindo a
troca de mensagens particulares e coletivas entre personagens, espaço
narrativo, onde rubricas indicam movimentações e emojis constroem atmosferas, e espaço de representação, quando
observamos por escrito interações e diálogos presenciais em apartamentos.
Definitivamente, nós estamos dentro de um prédio. E ainda estamos
em um grupo de WhatsApp? O Claricena joga com as possibilidades e ferramentas
do aplicativo a cada cena - áudios, figurinhas, gifs, emojis, envios de
visualização única, apagar mensagens - de modo que a atuação dos intérpretes é
muitas vezes tornada uma operação; ainda assim, há espaço para a representação
e a narração. Para conhecer as personagens, é importante estar atento às
sutilezas, como ruídos no fundo dos áudios e as telas de bloqueio dos celulares
vistos nas imagens compartilhadas.
Não é simples perceber sempre a
entonação das mensagens de texto - isso costuma acontecer quando conhecemos
nossos interlocutores; então uma pontuação, uma maiúscula, um determinado emoji e outros detalhes podem significar
muito. De todo modo, não há prejuízo na fruição de Mulher nenhuma cabe dentro de um apartamento. É curioso notar as
escolhas da encenação em torno dos tempos entre as mensagens - em certos
momentos, parece haver uma necessidade de colar a comunicação neste realismo virtual.
Realizar a encenação no WhatsApp
faz sentido para a proposta temática da obra: o Edifício Clarice, onde moram as
personagens, ainda que inteiramente plausível em nossa sociedade contemporânea,
também representa uma distopia que evoca o fim absoluto da privacidade - e, aqui,
por consequência, da liberdade e da intimidade - em tempos onde a velocidade da
(des)informação é inatingível e suas imprecisões são inescapáveis.
Nas trocas de mensagens, tempo,
expectativa e ansiedade dialogam diretamente com controle, liberdade, privacidade
e, essencialmente, ser. Irene, a
protagonista, fala de cafés com seu marido Jorge como quem fala de amores. Há
simultaneamente angústia e leveza em seu existir. Ao final, quando consolida-se
a ideia de que mulher nenhuma cabe dentro
de um apartamento, o caos não está nela, mas em seu entorno; nas estruturas
patriarcais heteronormativas que precisam ser implodidas.
E como, então, ir além? Imaginar
caminhos, futuros; incêndios. Definitivamente,
nós estamos dentro de um prédio, em grupos de WhatsApp, nas ruas e em todos
os lugares. Sim, Irene, querosene nas
paredes que oprimem, violentam, matam. Que ser chama sirva para incendiar as estruturas, pois nada aquece o coração mais do que a fúria.
Por nenhuma a menos.
ficha técnica
Mulher nenhuma cabe dentro de um
apartamento
Grupo Claricena
Encenação Audiovisual: Anderson
Vieira
Dramaturgia: Júlia Balista
Dramaturgismo: Barbara Esmênia
Produção Geral: Mariana Nunes
Assistência de produção: Fernanda
Heitzmann
Direção de Arte e Design: Suane
Monteiro
Criadores Intérpretes: Amara
Hartmann, Emmerson Leão, Fernanda Heitzmann, May
Oliveira e Nathiaga Borges.
Técnico de Transmissão: David
Oliveira
Assessoria de imprensa: Nossa
Senhora da Pauta
Provocação em Lives: Anderson Vieira, Canafistula Lima,Fernanda Heitzmann, Mariana Nunes, Oru Florydo, Tarcila Tanhas.
Social Media: Anderson Vieira
Realização: Grupo Claricena
Comunicação: Teatro Já!
Apoio: Nuclea TRANZBORDE
serviço
MULHER NENHUMA CABE DENTRO DE UM
APARTAMENTO
Duração de cada apresentação: 45
minutos
Plataforma utilizada: WhatsApp -
acesso via sympla
Dias: 29 e 30 de julho / 5 e 6 de
agosto (sexta e sábado, sessões às 19h e 21h)
Mais informações:
grupoclaricena.blogspot.com / @grupoclaricena
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